“NÃO SOMOS OCIDENTAIS! - QUE ÓTIMO!”

 - Ocidentais
Ernesto Neto, ao montar exposição na França, foi surpreendido pela pergunta de uma finlandesa, que fazia pesquisa universitária sobre arte brasileira: "Como se sente trabalhando no Ocidente?" Assim descobriu que o Brasil não era considerado país ocidental. Também me lembro da minha descoberta da nossa existência fora do Ocidente. Era 1989, tinha acabado de voltar da África, onde ouvira as pessoas dizendo "lá no Ocidente" como terra distante. Pensei: nunca usamos essa expressão no Brasil; isso deve ser sinal de que não questionamos nosso lugar no mundo, imaginado bem no meio da civilização ocidental. Então, abri a revista francesa "Art Press" e encontrei um artigo que reunia entrevistas com cinco artistas não ocidentais. Um deles era Cildo Meireles. Foi um terremoto identitário. Como ninguém tinha me ensinado essa lição na escola?

Confesso que fiquei revoltado. O artigo da "Art Press" era parte de um dossiê sobre a exposição "Les magiciens de la terre", hoje mítica por ter aberto as portas do mercado de arte ocidental para artistas do "resto do mundo". Cheguei a escrever textos desnecessariamente agressivos contra Jean-Hubert Martin, curador da exposição, que hoje me parece gente boa. Não era ressentimento por ter sido expulso de uma suposta sala VIP das civilizações. Ficara incomodado com uma declaração de Martin: "Não encontramos em todos os países onde fomos objetos que pudessem figurar na exposição. Na América do Sul, notadamente, fora o Brasil, tivemos decepções, pois encontramos artistas situados num sistema idêntico ao sistema da arte ocidental, com galerias, museus etc. E as produções desses artistas nos pareceram dependentes de nossos grandes centros, quando o que procurávamos era uma outra coisa — coisas que pudessem renovar o olhar, renovar o interesse". Aquilo me soou como ordem: para expor nos "nossos grandes centros" (aqui no Ocidente), vocês precisam ser exóticos, diferentes. Em outras palavras: teríamos que fazer macumba para turista curador.

A reação do Ernesto Neto diante da pergunta da finlandesa, foi bem mais bacana. Ele passou a questionar seus amigos europeus. "Pode me dizer, com sinceridade: o Brasil é um país ocidental?" Muitos de seus interlocutores nunca tinham imaginado que isso pudesse ser uma dúvida: "Claro que o Brasil não é Ocidente!" Ernesto foi se alegrando com as respostas, mesmo quando denunciavam preconceitos e clichês ("vocês são sensuais"). Aquilo se transformou em libertação, até virar convicção (e frase que apareceu em sua exposição "Dengo"): "Não somos ocidentais — que ótimo!"

Seu "que ótimo!" não é crítico, não está cuspindo no prato em que comeu. A civilização ocidental foi mesmo uma obra-prima da Humanidade (apesar do que trouxe de tragédia para o mundo), mas demonstra sinais evidentes de cansaço, de que já teve seus 15 minutos de fama imperial. Ela nos deu a régua e o compasso — euclidianos e não euclidianos — para construirmos outras civilizações. Devemos ser dignos de seus melhores ensinamentos. Não podemos ser otários para insistir em seus impasses.

Então: virar país desenvolvido não é chegar ao lugar onde o Ocidente está (o Ocidente não precisa nos absorver; sua salvação não virá com mais do mesmo). Temos esta missão impossível: propor para o mundo outra ideia de desenvolvimento, ou de arte (e criatividade). Do lado de fora do Ocidente, podemos olhar com igual interesse para outras civilizações e aprender com todas elas. Não estou sendo relativista, dizendo que tudo se equivale. Em todas as civilizações houve o bom e o ruim. Quero o bom, misturar o melhor de todos os lugares.

Quando pratico ioga, cada célula do meu corpo agradece a invenção da civilização indiana — e o fato de podermos hoje exercitar todas aquelas posturas sem precisar ter vivido com sistema de castas. Quando tomo uma pho, sopa vietnamita, venero o trabalho secular, colaborativo e anônimo da culinária chinesa, e sinto alívio por poder saborear alimento tão sofisticado sem ter vivenciado as guerras que espalharam a cultura do Império do centro pela Ásia.
Quando leio "Línguas indígenas — Memórias de uma pesquisa infinda", excelente coletânea de artigos de Yonne de Freitas Leite sobre alguns dos mais de 200 idiomas que existem no Brasil, eu fico encantado com as múltiplas possibilidades de expressão criadas aqui neste nosso canto no planeta, mas isso não me traz nostalgia da antropofagia não cultural. Repito: quero o melhor disso tudo junto, e não acho que estou querendo demais.
Posso ser ingênuo ou otimista exagerado, mas continuo acreditando piamente que existe algo no Brasil que nos torna mais capazes de enfrentar o desafio da mistura. Houve e há aqui, por exemplo, o encontro entre duas tecnologias do êxtase: o xamanismo indígena (a alma viaja para o mundo dos espíritos) e a possessão africana (o espírito se manifesta neste mundo). A convivência íntima entre essas visões de mundo incompatíveis pode nos dar um jogo de cintura metafísico (e criativo) realmente espantoso. Nosso destino é ser onça. O início de nossa história do futuro está escrito em "Meu tio, o Iauaretê" de Guimarães Rosa: mestiço que vira índio e vira onça e termina com nome africano, dando o bote, no ar, para tudo ficar bom-bonito. Só temos que dar um jeito de escapar do tiro. Escapando poderemos copiar Gil. Ele disse: "Para mim, raiz só de mandioca". Diremos: "Ocidente é só um bar de Porto Alegre que serve comida hare krishna".

HERMANO VIANNA

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